quarta-feira, 14 de maio de 2008

Concurso de Crimes


1. Conceito
Ocorre concurso de crimes quando um agente, em uma mesma oportunidade ou em ocasiões diversas, pratica dois ou mais delitos – pluralidade de fatos -, mediante unidade ou pluralidade de ações ou omissões.
Levando-se em consideração que o concurso de crimes encontra-se em nosso Código Penal, nos artigos 69 a 72, 75 e 76, isto no capítulo destinado à aplicação da sanção penal, alguns doutrinadores acham que seria mais correto denominar a matéria de “concurso de penas”.
Para Damásio de Jesus: “Na verdade, a questão deveria ser tratada na teoria geral do crime, pois são mais relevantes os problemas relacionados com o delito em geral que com a pena em geral”.
1.1 Comparações importantes
· Concurso de pessoas - pluralidade de agentes e unidade de fato.
· Concurso de crimes - unidade de agente e pluralidade de fatos.
· Concurso aparente de normas – pluralidade aparente de normas e unidade de fato.
É possível ocorrer concurso de pessoas (agentes) e concurso de crimes. Ex: duas ou mais pessoas, em concurso, praticam dois ou mais crimes.

2. Sistemas Doutrinários do Concurso de Crimes
Para o concurso de crimes, a doutrina apresenta vários sistemas que tratam da aplicação da pena. Vejamos os principais:
2.1 Sistema de cúmulo material - as penas dos vários crimes devem ser somadas;
2.2 Sistema da acumulação jurídica - as penas dos vários crimes não devem ser somadas, mas as penas de cada um dos delitos devem ser aumentadas, a fim de gerar uma severidade correspondente à gravidade do crime;
2.3 Sistema de absorção - a pena mais grave absorve a menos grave;
2.4 Sistema da responsabilidade única ou da pena progressiva única – não há cúmulo de delitos ou de penas, há unidade de pena que é progressiva em razão do número e qualidade dos delitos – agravantes, tomando como ponto de partida a cominada para o delito mais grave.
2.5 Sistema da exasperação da pena - aplica-se a pena do crime mais grave, aumentada de uma determinada quantidade em decorrência dos demais crimes.
No Brasil, o Código Penal adotou apenas dois destes sistemas, o do cúmulo material e da exasperação da pena.

3. Espécies de Concursos
Pode ocorrer concurso entre crimes dolosos e culposos, consumados e tentados, comissivos e omissivos, crimes e contravenções.
Espécies de concurso de crimes: concurso material ou real, concurso formal e crime continuado ou continuidade delitiva.
3.1. Concurso Material
3.1.1. Conceito
Segundo o disposto no artigo 69 do Código Penal brasileiro, ocorre concurso material quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não.
3.1.2. Requisitos
Para que haja concurso material de crimes, deve haver por parte do agente uma pluralidade de conduta (mais de uma ação ou omissão) e ainda, uma pluralidade de infrações penais como resultado das condutas.
A conduta – ação ou omissão – pode conter vários atos sem perder a unidade. Desta forma, se um agressor desfere vários golpes na vítima, há um só comportamento e crime único. Assim como, se o agente penetra em um pomar e subtrai cem frutos diversos, cometeu cem atos, mas uma só conduta e um só crime de furto.
3.1.3. Espécies
Podemos dizer que o concurso material de crimes é:
· Homogêneo - quando os crimes são idênticos (dois furtos, p.ex.).
· Heterogêneo - quando os crimes são diferentes (um furto e um estupro, p.ex.).
3.1.4. Aplicação da Pena
Em caso de concurso material de crimes, manda o artigo 69, ‘caput’, do Código Penal que as penas privativas de liberdade correspondentes a todos os crimes sejam cumuladas, isto é, sejam somadas aritmeticamente.
Não se pode deixar de lado o limite máximo de cumprimento de pena privativa de liberdade no Brasil, que é de trinta anos, conforme artigo 75 do Código Penal. – tempestividade das penas.
Primeiro será cumprida a pena mais grave; sendo aplicadas penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro as de reclusão (art. 69, “caput”, parte final), tratando-se de recomendação inútil no entendimento de Damásio de Jesus.
Se em relação a um dos crimes do concurso for aplicada pena privativa de liberdade, e não tenha sido concedida a sua suspensão condicional (‘sursis’), em relação aos demais crimes não será permitida a aplicação de penas restritivas de direito (art. 44 CP) em substituição da privativa de liberdade. É o que encontramos no artigo 69, § 1o , do Código Penal.
Finalmente, de acordo com o § 2o do mesmo artigo, encontramos a determinação de que se forem aplicadas penas restritivas de direitos, as que forem compatíveis entre si, a exemplo da prestação de serviços à comunidade e limitação de final de semana, deverão ser cumpridas simultaneamente, enquanto que em caso de incompatibilidade, como duas penas de limitação de final de semana, deverão ser cumpridas sucessivamente.
3.1.5. Individualização das penas
É importante observar que, havendo unidade processual, o juiz deve fixar, separadamente, a pena de cada um dos delitos e, depois, na própria sentença, somá-las. A aplicação conjunta viola o princípio da individualização da pena, anulando a sentença. Havendo diversas ações penais, a regra do concurso material é aplicada pelo juízo da execução, uma vez que, com o trânsito em julgado, todas as condenações são reunidas na mesma execução, momento em que as penas serão somadas.
3.1.6. Concurso material e substituição de pena
CP, art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando: (Redação dada pela Lei nº 9.714, de 25.11.1998)
I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo; (Redação dada pela Lei nº 9.714, de 25.11.1998)
Na redação anterior do inciso I, a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, aplicava-se apenas quando aquela fosse inferior a um ano, enquanto o sursis é cabível para penas privativas de liberdade não superiores a dois anos.
Com a nova redação, dada pela Lei nº 9.714, de 25.11.1998, que ampliou o benefício da substituição da pena, para quatro anos, o sursis, para esses casos, vem caindo em desuso, tornando inócua a vedação contida no § 1º, do art. 69.
A Súmula 243 do STJ, quanto ao chamado “sursis processual” estabelece: “O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um ano”.
3.1.7. Jurisprudências Selecionadas
“Crimes de estupro e atentado violento ao pudor. Sendo do mesmo gênero, mas não da mesma espécie, não se configura a continuidade delitiva ainda que perpetrados contra a mesma vítima. Concurso material que afasta a pretensão à unificação das penas” (STF, HC, Rel. Carlos Madeira, RT, 636:363). Há controvérsias.
“Os membros da quadrilha que praticarem a infração penal para cuja execução foi o bando constituído expõem-se, nos termos do artigo 69 do Código Penal, em virtude do cometimento desse outro ilícito criminal, à regra do cúmulo material pelo concurso de crimes (RTJ 104/104 e 128/325, RT 505/352)” (STF, HC 72.992-4, Rel. Celso de Melo, DJU, 14-11-1996, p.44469).
3.2. Concurso Formal
3.2.1. Conceito
Ocorre concurso formal de crimes quando o agente, mediante uma única ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes. É o que verificamos no artigo 70, ‘caput’, do Código Penal.
Sua diferença para o concurso material está no fato de possuir uma única conduta, enquanto que neste último, há uma pluralidade de condutas.
3.2.2. Espécies
O concurso formal pode ser:
· Homogêneo – quando os crimes estão descritos na mesma figura típica. Ex: atropelamento culposo com a morte de duas ou mais pessoas
· Heterogêneo – quando os crimes estão definidos em figuras típicas diversas. Ex: atropelamento culposo com a morte de uma pessoa e ferimento em outras.
· Perfeito ou próprio (art. 70, caput, 1a parte) – quando há uma só intenção do agente – unidade de desígnio. Ex: o agente dirigindo seu carro em alta velocidade atropela e mata duas pessoas.
· Imperfeito ou impróprio (art. 70, 2a parte) - quando os dois resultados tiveram origem em desígnios autônomos, isto é, quando o agente tem a intenção de obter os diversos resultados ou aceita o risco de produzi-los. Ex: o agente incendeia uma residência querendo matar todos os moradores.
O concurso formal próprio pode envolver crimes dolosos e culposos, a exemplo do sujeito que atira querendo matar e mata B, mas também atinge C, embora só quisesse atingir B - concurso formal próprio de homicídio doloso e lesões corporais culposas; ou apenas crimes culposos, como o que ocorre no trânsito quando o motorista colide seu veículo com o tripulado pelas três vítimas, que sofrem lesões corporais - concurso formal próprio de lesões corporais culposas.
O concurso formal impróprio só é possível nos crimes dolosos.
3.2.3. Aplicação da pena
No concurso formal perfeito, a aplicação da pena segue duas regras:
· se as penas forem idênticas, aplica-se uma delas aumentada de um sexto até metade.
· se as penas não forem idênticas, aplica-se a mais grave, aumentada de um sexto até metade.
No concurso formal imperfeito, a pena é cumulativa, como ocorre no concurso material, diante da diversidade de intuitos do agente (desígnios autônomos).
Sustenta Damásio de Jesus que no art. 70, “caput”, são encontradas uma causa de diminuição de pena (pois, em vez de haver a soma das penas, aplica-se apenas uma delas) e uma causa de aumento de pena (pois há um aumento de um sexto até metade).
O parágrafo único do artigo 70 estabelece que a pena a ser aplicada no concurso formal, não pode ser superior a que seria aplicada em caso de concurso material. Tal dispositivo visa impedir injustiças e determinar o bom senso na dosagem da pena. Assim, se num acidente automobilístico, houvesse um homicídio culposo e uma lesão corporal leve, sem a inobservância do disposto no parágrafo em estudo, a pena a ser aplicada ficaria bem acima do que se aplicaria no concurso material.
3.2.4. Desígnios autônomos - características
· Unidade de ação.
· Multiplicidade de determinação de vontade.
· Pluralidade de infrações penais
3.2.5. Concurso formal e crime continuado - concorrência
Não há impedimento a que os crimes apresentem entre si os nexos formal e de continuidade. Ocorrendo, a regra geral é que as penas dos diversos crimes sejam somadas.
As exasperações autorizadas do concurso formal e do crime continuado constituem exceções.
Contudo, há divergências se pode haver cumulação dos acréscimos decorrentes do concurso formal e da continuidade:
Pode: (TACrimSP, mv - Julgados 91/46 73/67).
Não pode: (STF, RTJ, 117:744).
3.2.6. Jurisprudências Selecionadas
“Crime de roubo, praticado no mesmo contexto fático, contra vítimas diferentes, ainda que da mesma família, constitui concurso formal próprio ou ideal e não crime continuado. Precedentes do STF e STJ” (STJ, HC 10.452/RJ, Rel. Felix Fischer, j. 22-2-2000).
“É questão pacífica, quer na doutrina quer na jurisprudência, que em casos de delitos culposos, havendo pluralidade de vítimas, em um único contexto, é de ser invocada a regra do concurso formal, devendo o acréscimo ser feito de acordo com o número de ofendidos” (TACrimSP, AC, Rel. Silva Pinto, JTACrimSP, 97:321).
“Injúrias e difamações proferidas num mesmo contexto constituem concurso formal e não crime continuado” (TARS, AC, Rel. Luiz Lúcio Merg, RT, 727:586).
3.3. Crime Continuado
3.3.1. Conceito
Inicialmente, cumpre-nos lembrar que a figura do crime continuado é uma criação jurídica que se deu em nome da boa Política Criminal, influindo diretamente na aplicação da pena.
Conforme o artigo 71 do Código Penal brasileiro, diz-se continuado o crime quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro.
No tocante a conceituação de crime continuado, encontramos as seguintes teorias:
· Teoria objetiva - apuram-se os elementos da continuidade delitiva objetivamente, independentemente do elemento subjetivo do agente, isto é da intenção do agente em praticar dita continuidade.
· Teoria subjetiva – desprezam-se os aspectos objetivos, levando em consideração apenas os elementos subjetivos, ou seja, a real intenção do agente, que deve realizar a sua atividade com o propósito inicial de praticar a continuidade.
· Teoria objetivo-subjetiva - além dos elementos objetivos, esta teoria exige também a unidade de desígnios, ou seja, a programação inicial do agente em praticar os atos sucessivos. Como exemplo podemos citar o empregado que, para furtar do patrão um rolo de malhas, o faz subtraindo todos os dias uma certa quantidade do produto.
Nosso código penal, conforme ensina Cezar Roberto Bittencourt, adotou a teoria objetiva, que reconhece a continuidade delitiva desde que os crimes sejam da mesma espécie e preencham os demais requisitos objetivos de tempo, lugar, maneira de execução, etc.
3.3.2. Natureza Jurídica do Crime Continuado
Vejamos algumas teorias que tratam da natureza jurídica do crime continuado:
· Teoria da Unidade Real - os vários delitos representam um crime único, desde que exista uma única intenção de lesionar um bem jurídico com a prática de atos sucessivos. Esta teoria como podemos observar, baseia-se na teoria objetivo-subjetiva estudada anteriormente.
· Teoria da Ficção Jurídica - na verdade existem vários crimes, mas que por convenção jurídica (criação da lei), verifica-se a figura do crime continuado. É uma figura imaginária criada pela lei para evitar pena excessiva no caso de dois ou mais crimes seguidos. Para amenizar a situação do acusado que praticou dois ou mais crimes da mesma espécie, dentro de circunstancias semelhantes de tempo, lugar e modo de execução, finge-se uma ligação entre os vários crimes, para permitir a aplicação de uma pena só (elo puramente objetivo entre as ações).
· Teoria mista - nega que o crime continuado seja uma unidade real ou uma ficção jurídica. Para a teoria mista, o crime continuado já se trata de um terceiro crime, ou seja, é uma figura própria, negando a unidade ou pluralidade de violações jurídicas.
Nossa legislação adotou a teoria da ficção jurídica.
3.3.3. Requisitos do crime continuado
· Pluralidade de condutas - o agente deve praticar duas ou mais condutas, caso contrário poderá haver, no máximo, concurso formal (de conduta única);
· Pluralidade de crimes de mesma espécie - de mesma espécie, segundo Damásio de Jesus, são os crimes previstos no mesmo tipo penal, i. e., aqueles que possuem os mesmos elementos descritivos, abrangendo as formas simples, privilegiadas e qualificadas, tentadas ou consumadas. Adverte o autor que não se pode confundir crimes de mesma espécie com crimes do mesmo gênero (ex.: furto e apropriação indébita = crimes contra o patrimônio);
· Nexo da continuidade delitiva - a existência de nexo entre as diversas infrações penais deve ser apurada pelas circunstâncias de tempo, lugar, modo de execução, dentre outras semelhantes. Estas circunstâncias são apenas elementos fornecidos pela lei para orientar o julgador na apuração da continuidade delitiva, não havendo a necessidade da presença de todas, para a configuração da continuidade, desde que fique demonstrada pelas semelhantes existentes. Adverte Cezar Roberto Bitencourt, que estas circunstâncias não devem ser analisadas individualmente, mas no seu conjunto.
o Condições de tempo - diz respeito ao aspecto cronológico, estabelecendo determinada periodicidade entre as condutas delituosas. A jurisprudência tem aceito a periodicidade no máximo mensal. Há entendimento de que a sentença para qualquer dos crimes impede o reconhecimento da continuidade.
o Condições de lugar - diz respeito à conexão espacial dos crimes, ou seja, os crimes devem ser praticados em uma determinada região ou localidade, não se admitindo a continuidade quando as infrações sejam praticadas em locais distantes uns dos outros.
o Modo de execução - diz respeito à forma, ao estilo, o “modus operandi” do agente na prática das infrações.
o Outras condições semelhantes - sob esta expressão, a lei faculta ao operador do Direito a verificação de qualquer outra circunstância que possa apontar para a continuidade delitiva.
3.3.4. Espécies
Podemos dividir o crime continuado, para fins de aplicação da pena, em duas espécies:
· Comum ou simples – crime cometido sem violência ou grave ameaça contra a pessoa (CP, art. 71, caput).
· Qualificado ou específico – crime doloso praticado com violência ou grave ameaça contra vítimas diferentes (CP, art. 71, § único).
3.3.5. Requisitos do crime continuado específico ou qualificado
· Vítimas diferentes (se for a mesma vítima, incidirá no caput do art. 71).
· Crimes dolosos.
· Emprego de violência e grave ameaça à pessoa.
Constata Cezar Roberto Bitencourt que “a circunstância de tratar-se de ‘vítimas diferentes’ é apenas uma exceção que permite elevar a pena até o triplo. Logo, uma interpretação sistemática recomenda que se aceite a continuidade delitiva contra bens personalíssimos, ainda que se trate da mesma vítima”.
3.3.6. Aplicação da pena
· No crime continuado simples
penas idênticas, aplica-se uma só delas, aumentada de 1/6 a 2/3;
penas diferentes, aplica-se a mais grave, aumentada de 1/6 a 2/3.
· No crime continuado específico - aplica-se uma das penas se idênticas ou a mais grave se diferentes, aumentada de 1/6 até o triplo.
O parágrafo único, que concede o reconhecimento para os crimes que lesam bens personalíssimos foi uma inovação trazida pela reforma penal de 1984, pois até então tratava-se de grande discussão doutrinária e jurisprudencial, inclusive com a edição da súmula 605 do STF, hoje superada, no sentido de não reconhecer a continuidade de crimes que lesassem bens personalíssimos.
Na aplicação da continuidade delitiva, deve-se atentar também para o disposto nos artigos 70 (viabilidade para o agente) e 75 (limite das penas privativas de liberdade).
3.3.7. Jurisprudências Selecionadas
“Quem faz do crime sua atividade comercial, como se fosse profissão, incide nas hipóteses de habitualidade, ou de reiteração delitiva, que não se confunde com o da continuidade delitiva. O benefício do crime continuado não alcança quem faz do crime a sua profissão. Precedentes” (STF, HC 74.066-9, Rel. Maurício Corrêa, DJU, 11-10-1996, p. 38501).
“O agente que rouba um carro e, no dia seguinte, utilizando-se deste carro e com o mesmo modo de execução, rouba um estabelecimento comercial, não está praticando dois crimes em concurso material, mas um crime continuado, reconhecendo-se o segundo como continuação do primeiro”
(TACrimRJ, 1ª Câm., Ap. 60.295, Nova Iguaçu, Rel. Sérgio Verani, j. 19-3-1997, v.u.).
3.3.8. Divergências Sobre A Continuidade Delitiva
Há divergências entre as decisões dos Tribunais, quanto haver ou não a continuidade delitiva nos seguintes crimes em concurso:
· Entre roubo e extorsão.
· Entre roubo e furto.
· Entre latrocínio e roubo.
· Entre estupro e atentado violento ao pudor contra a mesma vítima.
· Calúnia e difamação.

4. A Aberratio ictus e o Concurso de Crimes
Aberratio ictus quer dizer aberração no ataque ou desvio do golpe. Dá-se quando o autor, desejando atingir uma pessoa, vem a ofender outra. Ex.: o agente atira em A e mata B (A = vítima virtual; B = vítima efetiva). O Código Penal disciplina o instituto, que denomina “erro na execução”, no art. 73.
A aberração no ataque ocorre, segundo o texto, “por acidente ou erro no uso dos meios de execução”, como erro de pontaria, desvio da trajetória do projétil por alguém haver esbarrado no braço do agente no instante do disparo, movimento da vítima no momento do tiro, desvio de golpe de faca pela vítima, defeito da arma de fogo etc.
4.1. Espécies de aberratio ictus
· Aberratio ictus simples – quando o resultado é único. Ex: o agente atira em A, não o atinge, e mata ou fere B.
· Aberratio ictus complexa – quando ocorre resultado duplo ou múltiplo. Ex: o agente atira em A, matando-o ou ferindo-o, e atinge também B, que mata ou fere.
Nosso CP, na aberratio ictus com unidade de resultado, considera a existência de um só delito (tentado ou consumado).
Na aberratio ictus com duplicidade de resultado incide a 2.ª parte do art. 73 do CP: “No caso de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender, aplica-se a regra do art. 70 deste Código”. Forma-se, determina a lei, um fato complexo, tendo aplicação o princípio do concurso formal de crimes.
4.2. Divergências entre o Código Penal e a Imputação Objetiva
Na verdade, aplicada a teoria da imputação objetiva, as soluções diferem das adotadas pelo nosso estatuto penal.
Na aberratio ictus simples teríamos:
· se o sujeito, desejando matar a vítima virtual, erra na execução e mata terceiro, há concurso formal entre uma tentativa de homicídio contra a vítima virtual A e um homicídio culposo em relação à vítima efetiva B. Pelo CP haveria apenas homicídio doloso consumado;
· se o sujeito, desejando matar a vítima virtual, erra na execução e provoca lesão corporal em terceiro, existem dois delitos em concurso formal, tentativa de homicídio em relação a vítima virtual A e lesão corporal culposa no tocante a vítima efetiva B. Pelo CP haveria apenas lesão corporal dolosa.
Observe-se que no caso de morte da vítima efetiva B, a solução do art. 73 do CP é mais gravosa para o autor do que a da imputação objetiva, uma vez que a sanção detentiva do homicídio doloso consumado é maior do que a soma das penas mínimas de uma tentativa de homicídio e um homicídio culposo - aplicada a regra do concurso material. Não se trata, pois, de uma solução justa, uma vez que, para que haja responsabilidade por um crime doloso consumado, é preciso que o resultado seja espelho do comportamento.
Na aberratio ictus complexa, tomando o exemplo mais singelo, em que o autor, desejando matar a vítima A, vem a feri-la e a matar B, teríamos três situações:
· era ex ante - absolutamente imprevisível a presença de B o autor não pode responder dolosamente por ela, subsistindo somente a tentativa de homicídio contra A. O CP, em prejuízo para o autor, determina que o agente seja responsabilizado por homicídio doloso consumado e tentativa de homicídio, observada a regra do concurso formal;
· a presença de B era visível, e era previsível que viesse a ser atingido o autor deve responder, em face da morte de B, por homicídio culposo, além da tentativa de homicídio no tocante à vítima A, dois delitos em concurso formal. O CP determina que o agente seja responsabilizado por homicídio doloso consumado e tentativa de homicídio, observada a regra do concurso formal;
· pouco importava ao autor vir também a atingir B o autor responde por homicídio consumado com dolo eventual em relação a B, além da tentativa de homicídio no que concerne à vítima A – dolo direto. O CP determina que o agente seja responsabilizado por homicídio doloso consumado, observada a regra do concurso formal.

5. Parte prática – análise de casos

Caso 1
Paulo, desconfiado que sua mulher Joana o traíra com José, acaba por matá-la a tiros de revólver. Joana estava grávida de sete meses e levada ainda com vida ao Hospital, onde acabou morrendo, os médicos constataram que apesar da morte da mãe, o feto ainda estava vivo. Feita cesariana, a criança não resistiu e acabou morrendo. Ante o exposto, responda às seguintes indagações:
1. Qual o crime ou crimes praticados por Paulo ?
2. A morte da criança constituiu homicídio, aborto ou infanticídio ?
3. É relevante a circunstância de a criança haver morrido fora do ventre materno?
4. No caso de haver dois crimes, a hipótese é de concurso formal ou material. Explique sucintamente.
Respostas
1. Paulo cometeu os crimes de homicídio e aborto, em concurso.
2. A morte da criança constituiu aborto e não homicídio ou infanticídio. Com o ataque à vida da mulher, Paulo interrompeu a gravidez, ocasionando a morte do feto. A interrupção do estado gravídico, com a morte do feto, caracteriza aborto. Não é homicídio porque ao tempo da agressão não havia pessoa, nascente ou recém nascida. Homicídio é a morte de um homem por outro. Tutela-se a vida extra-uterina. Também não é infanticídio porque, além de o fato não ter sido praticado pela mãe, sob influência do estado puerperal, durante ou logo após o parto, o infanticídio tem como sujeito passivo o recém-nascido ou o feto que está nascendo, não o feto sem vida própria nem o abortado.
3. É irrelevante que a criança tenha morrido fora do claustro materno. O aborto está consumado com a interrupção da gravidez e morte do feto, dentro ou fora do útero, com ou sem expulsão.
4. A hipótese é de concurso formal imperfeito, previsto na segunda parte do art. 70 do Código Penal. Com uma só ação dolosa (desferir os tiros), Paulo cometeu dois crimes, por desígnios autônomos (dolo direto em relação à mulher e dolo eventual em relação ao feto), sendo as penas cumuladas. Mesmo que não quisesse interromper a gravidez e provocar a morte do filho, pelas circunstâncias do fato (tinha conhecimento do estado gravídico e atacou a mulher a tiros de revólver, querendo matá-la), assumiu o risco de causar o resultado, sendo que o aborto admite o dolo direito e o dolo eventual.

CASO 2
Clarice de tal, residente no município de Ipirá, Bahia, deliberou, em razão dos maus-tratos sofridos e constantes ameaças de morte, matar seu companheiro, Luís José de tal. Para tanto, deu-lhe uma refeição, acondicionada em vasilha plástica, composta de farinha e carne, sendo que, ao prepará-la, adicionou-lhe uma colher de chá do veneno conhecido por “chumbinho”. Posteriormente, Luiz José encontrou os seus filhos Rogério, 7 anos, e Gilvânia, 12 anos, aos quais entregou a marmita, a fim de que a levassem para casa, em razão de não haver serviço naquele dia. Ocorreu que os menores, antes de chegarem à residência, comeram a refeição e, em conseqüência, agonizaram até a morte. Presa, Clarice foi denunciada pelo Ministério Público Estadual pelo crime do art. 121, §2°, III, c/c os arts. 61, II, “f”, e 73, todos do Código Penal (homicídio doloso qualificado e agravado)
1. Qual o crime ou crimes praticados por Clarice?
2. No caso de haver dois crimes, a hipótese é de concurso formal ou material?
3. Em que artigo do CP se enquadraria Clarice?
Respostas:
1. O nosso Código Penal consagrou, no particular, a teoria da equivalência, hoje minoritária, segundo a qual, quando o agente, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela (CP, art. 73), motivo pelo qual não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime (art. 20, §3°). De acordo com o Código Penal, portanto, que se utiliza claramente de uma ficção, Clarice responderá por um só crime, homicídio doloso consumado contra Luís José, qualificado e hediondo, em razão do emprego de veneno, ainda que, de fato, tivesse matado seus próprios filhos culposamente.
2. Como foi dito anteriormente o nosso Código Penal vê na aberatio uma unidade substancial de crimes, ou seja, um só crime doloso - absorvida por este a “tentativa” contra a pessoa visada pelo agente. Não interessa, por conseguinte, que Clarice tenha matado os próprios filhos, que, presumivelmente, amava, mas o companheiro que, certamente, odiava. Com efeito, não é razoável que alguém que tenha se envolvido em semelhante tragédia, que, possivelmente, mais necessita do perdão do que do castigo, responda por um crime de homicídio doloso consumado e qualificado (CP, art. 121, §2°, III) – logo, hediondo – sujeito, em conseqüência, a uma pena de 12 a 30 anos de reclusão. Já a teoria da concreção ou concretização, a imputação objetiva, o dolo pressupõe sua concretização num determinado objeto, motivo pelo qual, se o agente atinge pessoa diversa da pretendida, não age com dolo quanto à pessoa realmente atingida. Logo, se pretendia matar A, vem a atingir B e C, responde, segundo esta teoria, por homicídio tentado contra A e homicídio culposo contra B e C, em concurso formal.
3. Pelo crime do art. 121, §2°, III, c/c os arts. 61, II, “f”, e 73, todos do Código Penal (homicídio doloso qualificado e agravado)
Note-se que, embora não preveja aumento de pena, a solução adotada é mais gravosa para o agente, uma vez que a pena do homicídio consumado é superior à pena resultante do concurso material da tentativa de homicídio (contra Luís José) e do homicídio culposo (contra os filhos).
Convém dizer, por último, que, a despeito da solução consagrada pelo legislador, pode o juiz, por meio de uma interpretação conforme a Constituição, adotar este entendimento, de modo a que o agente responda por dois crimes, em concurso material: homicídio culposo contra os filhos e homicídio doloso tentado contra o companheiro, porque ao legislador não é dado transformar, sem mais, e em prejuízo do réu, em doloso um crime culposo, nem em consumado um crime simplesmente tentado.

CONCLUSÃO

Os conhecimentos ministrados em sala de aula, complementados pelos estudos e pesquisas realizadas na execução do presente trabalho, propiciaram a aquisição de conhecimentos de suma importância para o entendimento da diversidade de correntes defendidas por doutrinadores e juristas e na grande dificuldade encontrada quando se pretende fazer justiça. Tais conhecimentos servirão, indubitavelmente, para atingirmos um bom desempenho nas atividades práticas que serão por nós desenvolvidas tanto na vida acadêmica quanto na profissional.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 5a ed., São Paulo: RT, 1999;
JESUS, Damásio de. Direito Penal – Parte Geral. 23a ed., São Paulo: Saraivas, 1999;
LEAL, João José. Direito Penal Geral. São Paulo: Atlas, 1998.
JESUS, Damásio de. Aberratio Ictus e Imputação Objetiva. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, mar.2002. Disponível em:.

Um comentário:

Anônimo disse...

Estou estudando para o próximo exame de Ordem, e resolvi fazer uma pesquisa específica de dosimetria da pena / concurso de crime, mas encontrei este conteúdo penal, gostei muito, gostei da linguaguem do autor.

Eu amo o Direito Penal, sei que esse ramo é para quem ama o ser humano e abomina o crime.

Gostaria de saber se o senhor tem livros e como encontrar.

Parabens pelo site